A nova noz

 

Setembro é o mês da cata da Castanha de Baru, ou seja, um pouco antes das chuvas desaguarem no Centro Oeste brasileiro.


Durante  período da cata da Castanha de Baru os moradores do Planalto Central.

A Castanha de Baru é fruto do baruzeiro que caem no chão, ou seja, a Castanha de Baru não se pega do pé.

Segundo especialistas em Castanha de Baru o baru melhor é aquele que está no chão.

Se o gado roeu, ou qualquer outro bicho, melhor ainda, pois ajuda no trabalho da quebra. Vai-se a polpa, fica o caroço duro, dentro do qual se esconde aquilo que o fruto tem de mais valioso. Embora a polpa seja perfeitamente comestível, além de doce e saborosa, ninguém liga se o rebanho rói. Todos querem é a castanha que está lá dentro, relíquia do Cerrado tão gostosa e versátil que é de espantar que só tenha sido descoberta faz menos de duas décadas.

O feito se deu em 1996, quando Edmilson Vasconcelos, artesão da zona rural
de Pirenópolis, em Goiás, torrou as primeiras sementes de baru e revelou, para assombro até das comunidades locais, um sabor que ninguém conhecia – próximo do amendoim, mas dono de identidade própria. Até então, o que se comia Cerrado adentro era a amêndoa crua, e ainda assim com parcimônia, pois lá se diz que dá pereba. Era comida à toa da criançada, que voltava com fome
da escola e, no caminho, parava nos baruzeiros para se saciar com as castanhas. Os pais não gostavam muito, já que o baru tem certa fama de afrodisíaco. “O povo diz que dá coceira”, confirma Gabriel Divino de Mesquita, o seu Bié, produtor do distrito de Caxambu, em Pirenópolis. O fato é que, por conta da reputação, e por dar-lhe um predicado qualquer, tão logo o baru chegou ao mercado deram de lhe chamar “viagra do Cerrado”.

Um exagero, claro, mas não de todo equivocado: a amêndoa do baru é uma das mais ricas em zinco, mineral ligado ao aumento da fertilidade. Também tem muita proteína, mais do que qualquer outra noz ou castanha. Entre seus pares, também é a menos calórica e ainda a campeã em ferro – o dobro do que tem o amendoim – e em triptofano, substância que favorece a produção de serotonina. Ou seja, o baru te deixa forte e feliz. E, conforme estudo recente da Universidade de Brasília, ainda ajuda no combate a doenças como câncer e diabetes, graças
a suas qualidades antioxidantes. Tudo isso, vale registrar, se a castanha for torrada. Crua, como comiam as crianças, perde grande parte de seus poderes.
E, obviamente, todo o seu sabor.

Na prática, a culinária nacional ganhou um novo ingrediente, tão ou mais versátil quanto qualquer castanha conhecida. De quebra, surgiu também uma nova fonte de renda em diversas comunidades do Centro-Oeste, sobretudo em Goiás e
Mato Grosso do Sul, e ainda uma nova maneira de aproveitar o baruzeiro sem derrubá-lo. Trata-se, por sinal, de uma espécie ameaçada de extinção: muito pé de baru já tombou por causa de sua madeira, de grande resistência e excelente qualidade, ou para abrir caminho aos campos de soja que costumeiramente devoram o Cerrado. Esses, por sorte, não chegaram a Pirenópolis, cujo relevo montanhoso oferece um obstáculo ao agronegócio. No lugar da soja, impera aqui a pecuária leiteira, e esta ao menos é gentil com baruzeiros (e só com eles), pois garantem, com sua copa generosa, sombra e frutos ao rebanho. Foi uma das razões pelas quais Pirenópolis tornou-se o principal produtor de castanha de baru no país.

Aqui ninguém vive de baru, já que é fruto que dá uma vez por ano e quando quer. Mas, quando dá, é garantia de venda até a próxima safra. Para as cerca de cem famílias coletoras que hoje existem em Pirenópolis, esta é uma ótima fonte de renda complementar, pois exige baixo investimento e pouca mão-de-obra. E isto é particularmente importante numa região onde boa parte da população é de pequenos produtores, donos de escassos quinhões de terra em que se planta apenas o essencial. E o que não se planta, se colhe na natureza – isso inclui coisas como caju, guariroba, cagaita e baru. Como explica seu Bié, “um pouco de tudo ajuda a sobreviver”.

A verdade é que quase não tem baruzeiro nas terras dos produtores. Os pés,
em geral, estão dentro das fazendas leiteiras, servindo de abrigo e refeição ao rebanho. Como caroço roído de baru é coisa que já não tem mais valia, a não ser para os coletores de castanha, os fazendeiros geralmente liberam a entrada dos produtores na propriedade. Nem todo fruto o gado come, claro, e esses o povo deixa, em parte, para os outros bichos se banquetearem. Baru é fruto que amadurece na seca, e um dos poucos na região com polpa carnosa – representa, portanto, grande fonte de alimento para uma infinidade de espécies animais do Cerrado, sobretudo aves e macacos. Por isso, ao menos um terço dos frutos que estão inteiros são deixados no chão.

A safra se concentra em setembro, embora algumas árvores comecem a produzir já em agosto e outras continuem até setembro. Seja como for, em menos de um mês os frutos todos já caíram. Como explica Lilian Santos, produtora no distrito de Caxambu, em Pirenópolis, “só presta na hora que cai”. É sinal que o baru está maduro e a castanha, no ponto de torrar e comer. Tem fruto cuja semente não vinga, e aí, para não gastar tempo com a quebra, cada baru catado do chão é chacoalhado ao pé do ouvido. Se a castanha balançar lá dentro, está tudo certo.

Num ano bom, cada baruzeiro produz em média 2 mil frutos. Embora a gravidade adiante o serviço, atirando-os ao chão, não tem moleza na colheita. É trabalho duro, que exige longas horas debaixo do sol, com as costas encurvadas, sem muita chance de folga. “Tem que coletar rápido, antes que comece a chover”, explica Erica Danielle, filha de seu Bié e porta-voz da associação local de produtores. As chuvas, ela conta, não tardam muito em chegar – usualmente no mês seguinte, por volta de outubro, anunciando a floração. Por conta de tudo isso, a coleta é serviço que no geral fica na mão da moçada. Seu Bié mesmo nem participa. Na comunidade de Caxambu, cabe a um pequeno grupo de jovens, mulheres na maioria, catar o baru do chão, botá-lo no balde e depois transferi-lo para sacos de 20 quilos, onde será armazenado.

Uma vez colhido, o baru segue para a quebra, que vem a ser o grande gargalo
da cadeia produtiva. Chegar à castanha pressupõe romper o caroço lenhoso
que a envolve – o endocarpo, que de macio não tem nada – e ainda fazê-lo
na medida certa para que a castanha não se parta. Ou seja, além do trabalho
que dá, a chance de perda é grande. Antigamente se fazia na base das
pedradas, o que obviamente é inviável do ponto de vista comercial. Hoje a
maior parte dos produtores usa um instrumento rústico, desenvolvido por um agricultor de Diorama, em Goiás, que nada mais é senão uma foice acoplada a uma tora de madeira, de modo que se possa controlar o peso e a força que se aplica sobre o fruto.

Alguns produtores já contam com uma máquina mais avançada, concebida
pela Embrapa, que aprimora o conceito da foice, substituindo-a por uma guilhotina conectada a um sistema de molas. A perda de sementes é menor,
mas a operação continua sendo manual, o que se traduz em muitas horas gastas partindo-se os frutos. Para ter uma ideia, uma pessoa consegue tirar só 3 quilos de castanha a cada dia de trabalho na quebra. Isso significa que ela passou o dia rachando nada menos que 3 mil frutos de baru.

Caxambu já tem uma máquina dessas, e ela fica na casa de seu Bié, que
também serve como central de beneficiamento de todo o baru produzido na vizinhança. O trabalho aqui, aliás, é todo comunitário. Envolve cerca de
30 pessoas – não só daqui, mas também de outros dois distritos próximos –
que são pagas pelo tanto de horas trabalhadas. Elas recebem 40 reais da associação local por cada 8 horas de serviço, seja na coleta, na quebra ou no beneficiamento. Em Pirenópolis, esta é a comunidade mais organizada, além de pioneira no comércio da castanha de baru. Além disso, é a que mais produz: em 2009, ano de safra excepcional, Caxambu tirou cerca de 2 toneladas de castanha, quase metade da produção do município. Desde 2006, este é também o centro nevrálgico da Fortaleza da Castanha de Baru, iniciativa criada pela fundação Slow Food para alavancar a produção e divulgar o produto.

Mas o trabalho não termina com a quebra. Há ainda que se torrar as
castanhas. E, no caso de Caxambu, isso é feito também na casa de seu Bié desde 1999, quando a cozinha de dona Albertina, sua esposa, virou unidade de processamento, graças ao aporte de uma entidade italiana. Fosse feita em casa, para consumo próprio, a torra da semente seria no fogão a lenha, mas, como se trata de uso comercial, houve que se comprar fogão a gás e revestir a cozinha de azulejo. Hoje, portanto, as castanhas aqui são torradas em panela de alumínio, em fogo baixo, por 15 minutos. “Não pode parar de mexer, para não queimar desigual”, ensina Erica, a filha de seu Bié.

Depois, é esperar esfriar e empacotar, o que desde 2008 é feito em embalagens a vácuo, desenvolvidas com o apoio da Slow Food. Elas ampliam o prazo de validade das castanhas até um ano – bem mais do que os dois meses dos habituais saquinhos de plástico. Isso, obviamente, também favorece a comercialização. Uma parte do baru que sai de Caxambu vai para a Central do Cerrado, uma rede de comunidades produtoras sediada em Brasília, de onde sai para o resto do país. A outra parte é vendida no centro histórico de Pirenópolis, onde faz tremendo sucesso entre os turistas. “Eu nunca achei uma pessoa que achasse o baru ruim”, conta seu Bié. Erica emenda: “Se tiver, vende”.

E não só as castanhas torradas de Caxambu, mas também muitos outros derivados, como é o caso do Baruzetto, um licor à base de baru, e do pesto, vendido em frascos nos empórios ou arrematando receitas nos restaurantes da cidade. Tem até uma padaria, a Trem do Cerrado, que faz da semente do baru a matéria-prima essencial de seus produtos, incluindo pães, biscoitos, bolos e barras de cereais. “Como castanha, está empatada com a do caju e a do Pará”, define Manuel Aponte, chef e proprietário.

Até aí, tudo bem. O problema é que a atividade é toda extrativista, ou seja, há que se depender dos humores da natureza. E ela não ajuda. Baruzeiro é árvore que não gosta de dar fruto todo ano, e ninguém sabe porque. Há quem suspeite que tenha relação com a frequência das chuvas no inverno, o que nenhum estudo ainda deu conta de comprovar. Talvez seja mais um efeito das mudanças climáticas, mas nem isso também se confirma. Sueli Sano, botânica e pesquisadora da Embrapa Cerrados, acredita que seja uma combinação de fatores, mas sugere que essa talvez seja uma característica da própria espécie. “Acho que essa irregularidade é da natureza do fruto”, afirma.

O fato é que os galhos carregam-se de frutos apenas a cada dois ou três anos. Até produzem nos anos intermediários, mas não o suficiente para atender à demanda. Sorte que a castanha, quando ainda dentro do caroço e armazenada
a salvo da umidade, pode durar até quatro anos. Ou seja, com bom estoque, aguenta-se até o próximo ano de fartura. Difícil, porém, é o estoque: todas as castanhas colhidas em 2009, por exemplo, foram vendidas em menos de um ano. Aí, faz-se necessário comprar de outras comunidades, inclusive de outros estados, para manter o mercado. Quem paga a mais por isso, claro, é o freguês.

Já se fala em cultivo, mas só em longo prazo, uma vez que exige investimento
e paciência. “Para começar a dar fruto, é dez anos”, diz Lilian Santos, produtora também de Caxambu. Como o mercado não espera, os coletores pedem mais estudos à comunidade científica, que ainda são escassos. Para as comunidades, prever o comportamento dos baruzeiros a cada ano seria uma boa forma de controlar a produção. Outra saída é aumentar o rendimento, mas para isso será preciso inventar uma máquina em que não se gaste tanto tempo quebrando caroços de baru. Mais gente colhendo também ajudaria. Aí, é questão de mobilizar as comunidades. “Perde-se muito baru nos campos”, diz Erica.

Enquanto nada disso acontece, o baru continua vendendo mais e mais, inclusive nas capitais, onde chega às grandes redes de supermercado e à cozinha de chefs como Alex Atala, Ana Luiza Trajano e Helena Rizzo, onde vira risoto, crosta de peixe e até manteiga. Ao mesmo tempo, não falta gente tentando encontrar outras utilidades para o baru, além da castanha. Mesmo em Caxambu eles já transformam o caroço em carvão, “muito bom” segundo seu Bié. “Demora mais pra pegar, mas demora a apagar”.

A polpa ainda é um desafio, pois o trabalho de tirar ainda é maior que o da semente. Quando surgir uma despolpadeira que facilite o serviço (e já há algumas em teste), teremos um novo ingrediente à disposição, dono de uma doçura abaunilhada que pode muito bem substituir o chocolate. A própria castanha também rende um óleo de altíssima qualidade, tão saudável quanto o de oliva, uma vez que é farto em gorduras insaturadas, aliadas importantes na redução do colesterol e na prevenção do câncer. Esse mesmo óleo, veja só, pode ainda virar biocombustível: neste momento, a Universidade Federal de Goiás estuda o potencial do biodiesel de baru. Ou seja, você ainda ouvir falar muito
do baru.